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HUMANIDAD EN RED

A religião e seus retalhos - Andréa Lúcia da Silva de Paiva

Até que ponto um país, como o Brasil, é um conjunto de sua religiosidade?

Refletir sobre religião nos conduz a uma soma de papéis e ações sociais. Em diferentes sociedades, a religião apresenta múltiplas interpretações, pluralidades, diversidade de crenças e práticas. A diferença se estende em como elas são vivenciadas por diferentes indivíduos em sua singularidade e coletividade.

Ao afirmar ser a religião um fenômeno existente em todas as sociedades, é preciso pensarmos o que a move, a dinamiza, em maior ou menor visibilidade social. O que trazem em seus discursos, os aspectos positivos e negativos sob olhar do observador e do observado, do praticante, do ateu, do sem religião e do agnóstico. É refletir sobre quais mediações percorrem os espaços do sagrado e do profano. A religião em sua relação e essência com a natureza. A religião como patrimônio cultural e imaterial. Ela como essência das narrativas negacionista. Dúvida. Certeza. Miséria. Sonhos. Esperança. Poder. Ideologia. Império. Colônia. Trevas. Dinheiro. Caridade. Dádiva. Devoção. Santidade. Memórias. Fé. Fanatismo. Paz. Medo.

É neste complexo de conceituações que traço a religião em seu simbolismo mais autêntico: o seu papel de artesã que costura seus tantos retalhos. É pelas mãos dela que o simbolismo se materializa. É no trançado de sua essência e ações que ela vai adquirindo ressignificados. Por retalho compreendemos tiras, parte de algo, fragmento e pedaço. É através dele que apresentaremos breves reflexões sobre o lugar da religião na vida social. 

A religião é um conceito que não apenas vem proporcionando um conjunto de pesquisas científicas e templos. Bailando entre o senso comum e a ciência (seja para fazer dela uma aliada ou uma rival) a religião costura vidas. Se o senso comum desafia os sistemas de “verdades” de que religião não se discute, seu valor não deve ser isolado à área do conhecimento. As religiões trazem, nas suas narrativas, o pressuposto investigativo científico.  Eis a esfera do sobre-humano e o sobrenatural em questão.

Na complexidade das análises científicas sobre a religião o diálogo nas e entre diferentes áreas do conhecimento humano se fazem presentes. As pesquisas científicas se utilizam de diversas metodologias visando trazer o reflexivo e o concreto daquilo que se busca conhecer, observar e descobrir, seja por documentos, análise comparativa, etnografia, observação participante e entrevistas, para citar alguns.

Das diferentes abordagens a respeito da religião uma delas gostaria de trazer para dar linha ao debate: é necessário deslocar a unidade da religião para um todo evidenciando o seu caráter cultural nas relações sociais. A religião nos impõe trocas como forma de comunicação entre os seres humanos e uma reinterpretação de organização do mundo a partir da forma e visões dos indivíduos.

Há, assim, algo nas religiões que não se perde: as vivências. Até mesmo quem vive fases de encontros e desencontros concentra relatos e experimentos em suas memórias. A costura entre as categorias separadas, a priori, pela comparação, nos coloca diante de uma estrutura social sob a qual lemos, escrevemos e percebemos as vivências: a separação entre as “bem” e “mal”, o belo e o feio, o sagrado e o profano, céu e o inferno, o tradicional e o moderno, a vida e a morte.

Se a religião traz este conjunto de retalhos, por sua vez, a religiosidade a coloca em ação. Há de admirar os espaços públicos, sobretudo os jurídicos e as escolas, a presença dos objetos religiosos: crucifixo, escrita religiosa, imagens, santinhos, colares e camisa. As velas acesas, a comida ofertada, os monumentos, o grafite, pichações compõem o cenário pelas ruas brasileiras. Todas estas ações nos conduzem para sinal de proteção por aqueles que as põem em prática. Elas também exercitam estigmas, preconceito, repulsas, dúvidas, dívidas ou admiração.

Etimologicamente, a religião tem sua origem no latim religere – que significa o cumprimento do dever, respeito pelo homem dos poderes que lhe são superiores, profunda reflexão – e do verbo religare (religar). O prefixo “re” se traduz por “outra vez”, e o verbo “ligare” por vincular, ligar. Assim, a religião, em sua essência, traduz um relacionamento que conduz o indivíduo a outra dimensão, o sobrenatural.

A religião percorre aquilo que classificamos como privado e o público em um espaço e tempo. No primeiro, ela conserva a demonstração de fé do fiel e dos sem religião, em sua subjetividade, onde a noção do segredo não necessita ser ocultada, necessariamente. É nesta dimensão que o homem se encontra em autarquia, o administrador de si. Há ocasiões que o privado não é a proteção em si, mas espaço de constantes conflitos ou tentativas de alianças com outros membros que ali habitam. Por sua vez, o público também atua na lógica do segredo subjetivo, silenciado ou narrados, seja de forma mais oculta ou escancarada. Se no privado o homem crê, envolto com sua subjetividade, é no público que se pratica esta ação em uma coletividade maior, que se nega, se contém ou se evita fazer no privado. Sendo assim, o público e o privado religioso centram nas mediações da existência humana. Exemplificando, um homem urbano que duvida da fé, ele tende a seguir a sua vida em confronto com aqueles que creem ressignificando, no silêncio, sua visão de mundo religioso. Da mesma forma, um fiel mais fervoroso crê na importância de sair de sua esfera privada e conduzindo, no público, palavras de fé a maior número de fiéis. Sua subjetividade e crença se entrelaçam na prática religiosa nas praças, transportes, elevadores de um prédio, ou seja, a qualquer lugar onde a importância da narrativa religiosa se coloca, muito das vezes, como um surto que precisa ser propagado e que se coloca contrário à alteridade. Atos como as procissões pelo interior de algumas regiões brasileiras descrevem tradição e coletividade pública da fé. Para aquele que executa estas ações, é dádiva, recompensa e certeza do caminhar na fé visto que a mesma, como diz a canção, “não costuma faiá”.

Neste ponto, resta nos perguntar sobre o indivíduo em suas ações sociais. A religiosidade, pela visão weberiana, percorre a ação tradicional, afetiva, racional por fins e por valores. O senhor que ocupa um espaço público utilizando deste como seu palanque, usando da narrativa bíblica para o chamado, tem consciência de sua ação. Ele age racionalmente em nome de uma moral que lhe agrega um tipo de valor: salvar almas da escuridão rumo ao que se propaga como salvação e perdões divinos. Contudo, é preciso se ater que a ação religiosa nem sempre age de forma “inocente”. É neste sentido que ela se coloca na posição de estratégia junto ao poder que se firma nas relações sociais ao permitir que um indivíduo imponha sua vontade sobre outros expressando e impondo, assim, dominação e legitimidade.

As relações de poder trazem, em uma análise foucaultiana, a força. Nesta visão, mesmo diante das possibilidades de lutas contra os padrões de pensamentos e dos comportamentos, torna impraticável ao homem se libertar das relações de poder visto que está posto em instituições como a escola e a prisão.

A religião, enquanto força ideológica, vem se fazendo muito presente na história mundial. Destacando o caso do Brasil, podemos afirmar a forte presença das igrejas neopentecostais no contexto político e mudanças no histórico da hegemonia do catolicismo.

Para gerações passadas a identidade religiosa do ser brasileiro que nascia era equivalente ao “ser católico”. Tratava de uma denominação vista como algo “natural”. Neste contexto, muitos brasileiros omitiam (ou generalizavam) suas ligações com as religiões de matriz africana assim como as práticas do espiritismo kardecista. Para os indivíduos de hoje, observamos maior concentração nas igrejas evangélicos pentecostais. Contudo, observa-se também a costura dos indivíduos entre outras religiões. O que vem predominando são cortes e costuras entre as religiões, onde as diversas experiências vêm trazendo novas identidades aos indivíduos.

Atualmente, a diversidade religiosa brasileira traz, no campo das disputas, uma costura quanto ao declínio de religiões que antes ocupavam uma centralidade como é o caso do catolicismo. O Censo do IBGE de 2000 e 2010 já apontavam para isso ao trazer os muitos retalhos religiosos, sobretudo, do movimento neopentecostal. De acordo com último censo do IBGE (2010)[1], a religião com maior número de praticantes é a católica com 64,6% da população, em segundo tem-se os evangélicos com 22,2%. E depois o destaque são para as pessoas sem religião com 8%. Os espíritas têm 2% da população e as religiões de matriz africana tem 0,34%. Resumindo, a proporão de católicos seguiu a tendência à redução. Paralelo, há o crescimento da população evangélica que passou de 15,4% para 22% em 2010. Dos que se declararam evangélicos: 60% origem pentecostal, 18, 5% evangélicos de missão; e 21,8% evangélicos não determinados. Há um aumento de espíritas e dos que se declararam “sem religião”. Quanto à escolaridade, são os espíritas apresentaram os mais elevados indicadores de educação e de rendimentos.

A constituição de 1988, vigente no nosso país, menciona brevemente sobre as religiões e não faz menção a nenhuma religião oficial, diferentemente da constituição de 1824 que declarava a religião católica como a oficial. Este dado também aponta para uma mudança quanto à declaração e posição da Igreja católica no país.

O Brasil se tornou um Estado laico em 1890 em uma busca de separação entre o Estado e a Igreja Católica Romana. Na Constituição Federal de 1988, podemos observar a afirmação do Estado laico expressa no inciso VI do Art. 5º, segundo o qual “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”; que “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva” (art. 5°, VII); e que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximirse de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (art. 5°, VIII).

Se a religião, em si, expressa liberdade de crença, de culto e de formas de organizações, por sua vez este sentimento (ou ação) se confunde na leitura de alguns fiéis conduzindo para a prática da intolerância religiosa, o desrespeito a outras religiões.

A intolerância religiosa é, muitas vezes, ocasionada em decorrência do desconhecimento e da ignorância. Ela acarreta vários tipos de violência, que podem ser individuais ou grupais, física, psicológica e simbólica. Esta prática tem crescido no Brasil, principalmente contra as religiões de matriz africana, o que nos remete a um reflexo da histórica da nossa intensa desigualdade racial. Há de se notar o grande número de terreiros que vêm sendo destruídos. Para exemplificar, o blog “Comunica que muda” [2] a respeito. A partir de dados coletados nas redes sociais sobre intolerância religiosa (abril, maio e junho de 2016) há o registro de algumas religiões que são vítimas de intolerância religiosa, dentre elas temos: religiões africanas (71%), evangélicos (7,7%), católicos (3,8%), judeus (3,8%) e ateus (3,8%).

Quanto à questão da religiosidade e ensino no Brasil, há um debate por alguns estudiosos sobre a formação básica oferecida pelas escolas públicas e dirigida aos futuros cidadãos, se ela deve incluir ou não a dimensão religiosa. No Rio de Janeiro, de acordo com a lei estadual 3.459, promulgada em 14 de setembro de 2000, pelo então governador Anthony Garotinho, ocorre a implantação do religioso confessional nas escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro. Neste sentido, questionamentos vêm à tona como, por exemplo, quais são os sentidos atribuídos à noção de laicidade do Estado? Podemos nos perguntar sobre a validade do direito da liberdade religiosa garantido pela Constituição brasileira?

O processo de secularização e laicização no Brasil ocorrido em meados do século XIX   surge no contexto da Proclamação da República e com a promulgação da primeira Constituição republicana de 1891. Na primeira Constituição republicana (1891), o ensino religioso não esteva presente, mas passou a fazer parte da Constituição de 1934 (Estado Novo) e na Constituição (1988) embora se tenha um debate extenso a respeito. Das seis constituições republicanas promulgadas, com exceção da primeira, o ensino religioso aparece mencionado em caráter facultativo.

A lei 9.475/97 aponta que caberia aos sistemas de ensino regulamentar a organização para definir os conteúdos do ensino religioso e das normas para a habilitação e admissão dos professores. As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, regulamentadas pela Resolução 02/98, passou-se a reconhecer a educação religiosa como área de conhecimento integrante da formação básica do cidadão. Com a Nova Base Nacional Comum Curricular implementadas no Ensino fundamental, em 2017, e no Ensino Médio, em 2018, a religião permanece indo à escola.


Abrindo e fechando os pontos de costuras, podemos refletir sobre as religiões como um conjunto de símbolos e rituais que possuem significados amparados pela crença de um grupo de fiéis que se identificam com a organização religiosa. Para os indivíduos que creem, a religião marca e ajuda a fixar momentos importantes na vida de todos. Não se pode estudar os deuses e ignorar suas imagens; os ritos, sem analisar os objetos e as substâncias que o oficiante fabrica (e manipula). Há o uso das religiões como aparelho ideológico de poder que se acirra cada vez mais na figura do indivíduo como marca o neoliberalismo.


Em tempos sombrios como o contexto atual da Pandemia causada pelo vírus SARS-CoV (Covid-19), presenciamos a discussão (ou ausência delas) sobre aberturas dos templos religiosos. O debate que se apresenta traz a religiosidade como um marco essencial para pensarmos, novamente, a identidade brasileira: se por um lado a religião passa a ser demarcada como um serviço essencial pela assistência que ela é capaz de proporcionar às pessoas em tempos difíceis, por sua vez, elas também se posicionam como “impureza” por ser um dos locais centrais para a contaminação devido ao grande número de frequentadores. Eis uma nova versão do sagrado e profano que costuram e ressignificam as religiões na política neoliberal e que nos trarão provocações para continuar pensando o papel religioso no contexto brasileiro e mundial. Em tempos de maior ou menor desafios e perspectivas, as religiões permanecem a costurar, a partir dos seus diversos retalhos, a condição da existência humana.

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Andréa Lúcia da Silva de Paiva
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Campos dos Goytacazes desde 2013.





[1]
IBGE | censo 2010 | resultados | notícias | Censo 2010: número de católicos cai e aumenta o de evangélicos, espíritas e sem religião.

[2] Religião | Comunica Que Muda