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HUMANIDAD EN RED

HUMANIDAD EN RED

Editorial

A ilimitação tornou-se o registro normativo da atual quadra histórica: instaurou-se uma espécie de “vale tudo” na busca por lucro ou vantagens pessoais de poucos. A solidariedade e a fraternidade passaram a ser vistas como fraquezas em meio a relações sociais que reproduzem a lógica da concorrência, enquanto o egoísmo tornou-se uma virtude aos olhos de pessoas que se imaginam como empresários-de-si em disputa permanente com outras empresas. Desaparece a consciência de classe, a possibilidade de superação coletiva de problemas comuns e o laço social. O absurdo torna-se naturalizado: pessoas são tratadas como objetos que devem ser usados ou empresas concorrentes que devem ser vencidas ou destruídas. O “comum”e a “política”, tornaram-se palavras malditas. A “esfera do inegociável” (que era constituída de princípios, regras, bens e pessoas) desapareceu: o “capitalismo sem luvas” transformou tudo e todos em mercadorias ou lixo.

A racionalidade neoliberal, o modo de ver e atuar no mundo que trata tudo e todos como objetos negociáveis ou descartáveis, a partir de cálculos de interesse que visam exclusivamente a obtenção de lucros tendencialmente ilimitados ou vantagens pessoais tornou-se hegemônica. Os países e as lideranças políticas que ousaram resistir à lógica de servir exclusivamente aos interesses dos detentores do poder econômico passaram a sofrer processos de demonização, desde o reforço de embargos econômicos a processos criminais em violação à legalidade, em um movimento político-ideológico que transforma tanto a economia quanto o direito em armas de guerra contra os inimigos tanto do projeto neoliberal quanto do discurso ideológico de que não existem alternativas a ele.     

O Estado, condicionado pela racionalidade neoliberal, abandonou as ações tendentes à concretização dos direitos fundamentais, para se voltar à homologação dos interesses dos detentores do poder econômico (os “super-ricos”) e ao controle dos indesejáveis (os pobres e os inimigos políticos do projeto neoliberal). Diante desse objetivo, ao lado do encarceramento em massa dos pobres (pessoas que não interessam ao modelo econômico) e do lawfare (utilização do direito como arma de guerra) contra os inimigos políticos, os cálculos de interesse neoliberal levaram às tentativas de desmantelamento das políticas sociais e, o que é ainda mais grave, ao extermínio planejado de parcela considerável da população através de ações (chacinas,, grupos paramilitares, ações policiais em bairros periféricos etc) e omissões (ausência de políticas serias de contenção da pandemia, falta de vacinas, investimento em remédios ineficazes, propaganda contra medidas preventivas etc). Tem-se, então, aquilo que Achille Mbembe chamou de necropolítica: o matar e o deixar morrer para etnder aos interesses dos detentores do poder econômico.

Durante os últimos anos nos deparamos cada vez mais com manifestações necropolíticas, multiplicando-se por todo Brasil e por outras regiões da America Latina. Ações agressivas, discursos de ódio, presságios perigosos, mentiras transformadas em capital no mercado de ideias. Um contexto que levou a um golpe de estado e à prisão de lideranças da oposição ao projeto neoliberal.

Ao mesmo tempo, cresceu o poder de igrejas evangélicas que exploram o mercado da fé e buscam influenciar no resultado das eleições pelo Brasil, transformando a ligação com o plano espiritual em mais um negócio voltado ao enriquecimento de poucos. Nesse movimento, o pensamento mais reacionário, sexista e homofóbico ganhou espaço nas redes de televisão controladas por pastores e empresários. Ainda no interesse dos detentores do poder econômico internacional, deu-se o desmonte da economia produtiva brasileira, com destaque para a perseguição das grandes construtoras nacionais que, até bem pouco tempo, disputavam o mercado com corporações estrangeiras.

Tem-se, portanto, bem delineado um cerco produzido para manter a exploração e a colonização do Brasil, bem como impedir qualquer projeto voltado à emancipação da população e o enfrentamento adequado dos desafios gerados pela mundialização capitalista e pelas mudanças climáticas. O imperialismo, portanto, ainda é o inimigo, bem como os seus aliados que se encontram em multinacionais, nos grupos financeiros, na classe política subserviente aos interesses internacionais.

Sabemos que a chave para a solução dos problemas instaurados no país, de ordem social, ética, política e econômica passa pelo resgate do comum, pela formação de consensos democráticos mínimos, por investimento em políticas públicas e por uma educação emancipatória. É preciso, pois, apostar no desejo de democracia. Para tanto, o papel da cultura merece destaque, posto que fundamental à superação do imaginário neoliberal. De igual sorte, na contramão das políticas neoliberais, deve-se investir na construção de uma saúde pública de qualidade, em medidas de preservação do meio ambiente, em ações educacionais de resgate dos princípio, regras e valores democráticos, todos necessários à reconstrução do país.

A alternativa ao caos gerado pelo neoliberalismo ultra-autoritário, do qual Jair Bolsonaro é o principal exemplo, deve ser percebida como uma atividade criativa a partir de uma nova base e de um outro princípio organizador capaz de gerar algo radicalmente contrário ao neoliberalismo. Como já se viu, o contrário do neoliberalismo é o comum. A ideia do comum é que se faz presente nas lutas sociais, movimentos populares e manifestações culturais contra o neoliberalismo. Pode-se, então, apontar que esse princípio capaz de fundar as novas relações sociais, condicionar o funcionamento do Estado e produzir uma nova economia psíquica é o “comum”, é aquilo que não pode ser apropriado ou negociado.

Como princípio capaz de criar o novo, o “comum” deve ser entendido como o contrário da concorrência, da ilimitação e da propriedade privada. O “comum” não é uma coisa ou a qualidade de uma coisa, também não é um fim, nem um “modo de produção” ou mesmo um “terceiro” interposto entre o Estado e o Mercado. O comum deve ser tido mais como um substantivo do que como um adjetivo: trata-se de um “princípio” político e estratégico. O “princípio do comum” enuncia que existe o inapropriável e o inegociável. A partir da instituição do comum, novas imagens, novas normas, novos comuns e uma nova realidade podem surgir. A partir do comum, busca-se construir uma nova hegemonia, entendida como uma direção cultural e moral que se afaste da desigualdade e do horror naturalizados pelas imagens e normas neoliberais.

A alternativa ao neoliberalismo passa por instaurar uma esfera do inegociável, regida pela norma da inapropriabilidade: determinadas coisas não devem ser apropriadas porque devem ser reservadas ao uso comum. Em outras palavras, o princípio do comum, como norma que é, impõe limites ao exercício do poder, de qualquer poder, e também à busca de lucros, que são instituídos a partir de práticas coletivas instituintes dos comuns. Os direitos fundamentais, por exemplo, são “comuns” que resultaram de lutas coletivas e hoje representam uma esfera do inegociável.

No campo político, o comum leva à efetiva atividade de deliberar sobre o que é “bom” ou “justo”, bem como sobre as ações e opções que devem ser tomadas a partir da atividade coletiva. Abandonam-se, em princípio, “cálculos matemáticos” e “técnicas de gestão” adotadas a priori, substituindo-as por deliberação e julgamentos coletivos diante das particularidades e da sensibilidade inerentes a cada caso concreto. Em suma, para superar o neoliberalismo é preciso construir uma racionalidade, uma normatividade e um imaginário do “comum”, daquilo que vale por ser construído “por” e “para” todos. Daquilo que, por ser comum, é inegociável. Por isso é preciso insistir na força do comum, desdemonizar a palavra e refundar o conceito de comum como objeto da política. Não é impossível. Nesse sentido, foi pensada a obra que o leitor tem em mãos.

Editores da RedhBrasil


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