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HUMANIDAD EN RED

Educação e pandemia no Brasil - Silvina Julia Fernández

Pandemias são catástrofes globais que afetam não apenas à saúde e à sobrevivência das pessoas, mas também provocam outras catástrofes, atreladas aos seus efeitos nos diversos âmbitos da vida social. Nesse sentido, muito temos ouvido falar dos efeitos da pandemia na economia, com a qual, por exemplo, a indústria farmacêutica está intimamente ligada; mas também percebemos o quanto são noticiados os efeitos da situação pandêmica na política, com relação aos diversos posicionamentos e decisões de grupos, partidos, países e organizações internacionais no Brasil e no mundo afora. Muito menos, no entanto, têm sido as notícias e os debates sobre os efeitos da pandemia na educação, apesar de termos assistido ou lido diversos relatos esporádicos de professores e professoras que, trazidos pela mídia numa aura heroica e invariavelmente destacados num protagonismo individual, enfrentam a barreira tecnológica e até a distância geográfica ou social, para fazer chegar o ensino até os seus estudantes, mas será que essa ação garante a aprendizagem? Por que a educação não tem tido o destaque que outros âmbitos da vida social humana vêm evidenciando no debate público? Quais têm sido as ações públicas ou coletivas em função de garantir o direito à educação? Direito humano fundamental, aliás, assim como outros que também se viram ameaçados de forma geográfica e socialmente diferenciada, com o surgimento e o desenvolvimento da atual pandemia

No Brasil, em março de 2020, após declaração de Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV, doravante Covid19), declarada pelo Ministério da Saúde através da Portaria Nº 188, de 3 de fevereiro de 2020, foi registrada a transmissão comunitária deste vírus. A partir disso, o país veria reproduzir-se uma situação inédita e complexa já colocada pela pandemia em outros lugares do mundo, também aqui com graves consequências em diversos âmbitos da vida social, aprofundando ainda mais questões estruturais que a precediam e que se viram agravadas de 2017 em diante: enorme desigualdade social, empobrecimento da maioria da população, desemprego, escasso acesso a serviços básicos como saúde, água potável, transporte coletivo decente, segurança pública, entre outros.

Nesse contexto, entre as primeiras medidas tomadas para tentar conter o avanço deste vírus, encontramos a suspensão das aulas presenciais, com o intuito de impedir aglomerações em espaços fechados e, com isso, evitar o contágio. Naquele momento, essa suspensão parecia ser de curto prazo, mas, conforme presenciamos o agravamento da disseminação da doença e, posteriormente, a demora na vacinação da população, podemos identificar escolas e universidades que, ainda hoje, dezoito meses depois, continuam sem reabrir as suas instalações para o desenvolvimento das aulas presenciais.

Nesse ínterim, que já leva mais de um ano e meio sem condições integrais para um retorno seguro às salas de aula presenciais para todos os envolvidos na educação brasileira, diversos desafios foram sendo colocados ao Sistema Nacional de Educação em função de garantir o direito à educação, que só se realiza desde que possamos garantir também o direito à aprendizagem. E para isso, precisamos garantir a democratização do seu acesso, do seu governo e a sua qualidade.

 


A educação brasileira carrega uma histórica marca excludente, tenazmente denunciada pelos Pioneiros da Educação Nova, já nos inícios do século XX, e só parcialmente superada no final do século passado, com a quase universalização do Ensino Fundamental que, segundo os dados do Censo Escolar do INEP, em 2002, alcançou 2,78 milhões de estudantes concluindo a oitava série, o que representa aproximadamente 80% da população na faixa etária (PORTELA, 2007). Porém, foi durante os governos do Partido dos Trabalhadores que vimos a triplicação das matrículas das creches (de 1,23 milhão de matrículas, em 2003, para mais de 3,04 milhões em 2015) e a quase universalização do acesso à pré-escola, a elevação a 97,3% da cobertura da matrícula do Ensino Fundamental e a 67,4% no Ensino Médio (CARDOSO NETO; DE NEZ, 2021: 133-134). Com relação à Educação Superior, em 2004, a taxa de escolarização de 18 a 24 anos era de 10,5%, uma das mais baixas de América Latina[1], mas, em 2017, tinha atingido o 19,7% da população nessa faixa etária (INEP, 2017: 3). Essa tendência crescente, quase inercial, continuou elevando paulatinamente os indicadores tanto na Educação Básica quanto no Ensino Superior, até 2019 (CARDOSO NETO; DE NEZ, 2021: 133-134), sendo interrompido, no entanto, com a irrupção da pandemia de Covid19 em 2020.

Com efeito, sem considerar o fechamento das escolas de Educação Infantil, que enfrentou desafios mais complexos com relação à possibilidade de implementar aulas remotas para os mais pequenos, como os bebês nas creches, e perderam quase 193.000 de estudantes[2], em janeiro deste ano, a CNN noticiava o aumento dos dados de 2020 referentes ao abandono escolar para o Ensino Fundamental e Médio. 

No ano passado, foram cerca de 5,5 milhões de crianças e adolescentes sem acesso à educação. A quantidade de alunos, com idades entre 6 e 17 anos, que abandonaram as instituições de ensino foi de 1,38 milhão, o que representa 3,8% dos estudantes. A taxa é superior à média nacional de 2019, quando ficou em 2%, segundo dados da Pnad Contínua. Somado a isso está a situação de 4,12 milhões de alunos (11,2%) que, apesar de matriculados e sem estar em período de férias, não receberam nenhuma atividade escolar, resultado do ensino pautado pelas aulas online (FORSTER, CNN Brasil, 2021)

 

Como fica em evidência nesta notícia, 3,8% dos/das estudantes abandonaram oficialmente os estudos, porém, há uma porcentagem ainda maior que, embora tenha a sua matrícula oficialmente efetivada na escola, não tem realizado nenhuma atividade escolar ao longo de todo o ano de 2020 (11,2%). Nesse mesmo raciocínio, cabe perguntar quantos serão os estudantes que, tendo tido acesso a algumas atividades escolares, não o tem feito com a frequência e a assistência ou mediação adequadas para que se realize uma aprendizagem significativa, apesar de todos os esforços dos/das docentes que tiveram de se reinventar para transformar as suas aulas presenciais em aulas remotas.

Considerando que abandono se refere ao caso em que o estudante deixa de frequentar a escola por um tempo, porém, posteriormente retorna, vejamos agora os dados localizados referentes a evasão, ou seja, quando o/a estudante não retorna:

Pesquisa da DataFolha, também apresentada em janeiro, aponta que aproximadamente 4 milhões de estudantes brasileiros entre 6 e 34 anos deixaram as aulas em 2020, o que significa 8,4% de evasão escolar. Na educação básica, a taxa é ainda maior: 10,8% dos alunos largaram a escola em 2020, sendo 4,6% no ensino fundamental. Para termos de comparação, em 2019 as taxas oficiais de evasão foram de 4,8% no ensino médio e 1,2% no fundamental. Os números dão a dimensão do desafio em um cenário no qual o retorno progressivo às aulas presenciais permanece indefinido. (LENCASTRE, #COLABORA, 2021)

 

A situação no Ensino Superior, da mesma forma, acompanhou esse cenário desolador revertendo a tendência expansionista registrada anteriormente, apesar dos esforços pela inclusão digital dos/das seus estudantes:

[...] diversas IES, públicas adotaram programas de auxílio digital, para atender a estes estudantes, com fornecimento de chips de celular com plano de dados móveis para acesso às atividades remotas como forma de prevenção à evasão discente, como é o caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mesmo assim, é possível que haja uma evasão discente do sistema sem precedentes. Segundo levantamento realizado pela SEMESP, que congrega mantenedoras de instituições de educação superior, 608 mil estudantes desistiram ou trancaram a matrícula no primeiro semestre de 2020, o que significa 83 mil a mais do que no mesmo período de 2019. Também destacam o aumento na inadimplência, principalmente entre os alunos dos cursos EaD e a queda no ingresso de estudantes no segundo semestre de 2020. Outro levantamento, do C6 Bank/Datafolha, verificou que quatro milhões de alunos, entre 6 e 34 anos abandonaram os estudos em 2020, e que a evasão foi maior no ensino superior e nas classes C e D (HONORATO; BORGES; KLITZKE, 2021: 91)

 

Sabemos também que os sentidos do acesso à educação também foram ressignificados, dado que a oferta educacional remota se voltou maciçamente a um formato virtual-digital e a que o acesso aos meios tecnológicos necessários para realizar atividades escolares por parte das famílias não está suficientemente capilarizado na população brasileira. Nesse sentido, a nota de Forster, da CNN Brasil, complementa:

Pesquisa realizada entre o final de abril e o início de maio de 2020, com quase 4.000 redes municipais de ensino, mostrou que apenas 33% dos domicílios brasileiros possuem computador e acesso à internet. O levantamento foi feito pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), em parceria com o Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb), Fundação Itaú Social, Fundação Lemann e Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). (FORSTER, CNN Brasil, 2021)

 

O ensino remoto supõe uma acessibilidade básica que, pelo visto acima, 67% das famílias não possui de forma adequada. Apesar disso, muitas e muitos estudantes conseguiram assistir vídeos ou realizar algum outro tipo de atividade escolar pelos celulares, porém, também enfrentaram as questões de acesso a internet e as dificuldades próprias deste dispositivo que não facilita a realização de repertórios completos de atividades pensadas para serem resolvidas no computador. Isto sem mencionar os casos em que existe apenas um dispositivo tecnológico – seja computador, tablet ou celular – para uma família inteira que deve compartilhá-lo para todos os afazeres relacionados, não apenas as atividades escolares.

Por outro lado, ter tido acesso às atividades em si não garante que a atividade tenha sido realizada ou que o ambiente doméstico da/do estudante colabore nesse sentido. Isto, considerando o agravamento da situação econômica e sanitária pela que atravessa a população brasileira, levou a que as escolas, em muitas localidades, funcionassem mais como garantidoras da segurança alimentar dos/das estudantes através da distribuição dos recursos destinados à merenda escolar por meio de cartões ou mesmo de marmitas, incluindo-se desta forma numa tentativa de expandir a rede de proteção à infância e à adolescência, quer dizer, dentro das políticas do cuidado e da assistência social antes do que da política educacional, como veremos a seguir.

 

Na Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, fica explicitado que:

Art. 8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino.

§ 1º Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais. [...]

 

Destacamos o protagonismo da União no sentido de coordenar a política nacional de educação, o que ajudaria a dar unidade ao Sistema Nacional de Educação, questão que vem sendo discutida por diversos setores e exigido muito esforço por parte de todos os entes federativos ao longo de décadas, com paulatina melhoria ao longo do tempo, a fim de evitar a segmentação e a desigualdade na oferta educacional nacional frente às grandes disparidades regionais. Nesse sentido, espera-se que, durante uma catástrofe nacional como a pandemia de Covid19, o governo federal assuma com vigor e responsabilidade esse papel, a fim de evitar o aumento da desigualdade na oferta educacional nacional.

Sabemos que a concretização do regime de colaboração no país é de difícil realização e que ainda existem aspectos dúbios ou em discussão, dado que ainda não temos uma lei que o operacionalize, porém, em se tratando da coordenação de uma política nacional de enfrentamento à situação pandêmica no setor educacional, vemos a necessidade de uma atuação clara no sentido tanto de proteger a saúde de todos e todas os que frequentam as escolas quanto de garantir o direito à educação e à aprendizagem.

No entanto, sem abandonar a raquítica agenda educacional centrada quase exclusivamente na implementação do ensino domiciliar, no retorno do arcaico método fonológico no processo de alfabetização e na militarização das escolas regulares, em 18 de agosto de 2020, foi publicada a Lei nº 14.040 que, entre outras disposições e em caráter excepcional, dispensa às escolas da obrigatoriedade da observância dos 200 dias letivos, sem necessidade de cumprir a carga horária mínima anual prevista para a Educação Infantil, mas com cumprimento da carga horária mínima anual para o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Também habilita à reorganização do calendário escolar e permite, no Art. 2, II que:

§ 3º Para o cumprimento dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, a integralização da carga horária mínima do ano letivo afetado pelo estado de calamidade pública referido no art. 1º desta Lei poderá ser feita no ano subsequente, inclusive por meio da adoção de um continuum de 2 (duas) séries ou anos escolares, observadas as diretrizes nacionais editadas pelo CNE, a BNCC e as normas dos respectivos sistemas de ensino.

§ 4º A critério dos sistemas de ensino, no ano letivo afetado pelo estado de calamidade pública referido no art. 1º desta Lei, poderão ser desenvolvidas atividades pedagógicas não presenciais:

 

Repare-se que a necessária flexibilização veio acompanhada da possibilidade ou não de os entes federativos desenvolverem atividades pedagógicas não presenciais, o que levou a uma diversidade enorme de respostas nesse sentido. Três meses depois do fechamento inicial das escolas, não só a demora na reação frente à situação do isolamento social (a lei foi publicada em agosto), contra o qual o próprio governo federal lutou sistematicamente ao longo da pandemia com o argumento de que a economia não pode parar, mas também a delegação de uma decisão pedagogicamente cardinal sobre a continuidade ou não do trabalho pedagógico no país, inevitavelmente, gerou um cenário caótico sob o ponto de vista de um Sistema Nacional de Educação articulado e coerente.

Nesse cenário observamos municípios, por exemplo, adotando plataformas online, materiais didáticos impressos ou através de diversos médios de comunicação e outros que, simplesmente, também delegaram essas decisões para a gestão escolar. É claro que, nesses casos, mesmo não tendo a obrigação de desenvolver aulas remotas e de dar continuidade ao currículo escolar, vimos muitos e muitas gestores e docentes buscando desenvolver meios e formas de chegar até os/as estudantes a fim de, pelo menos, não perder o vínculo com eles/elas e suas famílias. Concomitantemente, as redes de ensino que assumiram alguma política específica para dar continuidade às aulas remotamente, também buscaram formas de oferecer algum tipo de formação continuada aos professores para o uso das novas formas dessa oferta, porém, nos outros casos, foi o próprio corpo docente que investiu sozinho nessa empreitada.

Mas a segmentação do Sistema Nacional de Educação não se resume a essa fragmentação específica, a situação pandêmica também evidenciou o aprofundamento da fragmentação que historicamente apresenta entre escolas públicas e privadas. Com efeito, assim que iniciadas as medidas de isolamento social, as escolas particulares buscaram articular-se rapidamente para transferir as suas aulas online e, assim, não perder matrícula, em oposição ao acontecido nas redes públicas, como visto acima. Pela extração social do seu alunado, aliás, o acesso à tecnologia e à internet por parte das famílias também teve um melhor desempenho no que nas outras escolas, aumentando a desigualdade entre os públicos atendidos por estas duas redes de escolas no referente à distribuição e apropriação do conhecimento.

Cabe destacar, assim mesmo, que ainda em 2020, num contexto de grande disseminação do vírus e sem qualquer avanço da vacinação em diversas cidades do país, frente à perda de matrícula no setor particular, vimos um controverso movimento dos mantenedores das escolas privadas pelo retorno às aulas presenciais. E, surpreendentemente, também vimos as autoridades locais permitindo esse retorno diferenciado, já que enquanto até praias, bares e restaurantes eram abertos e deixavam as escolas públicas fechadas, as escolas privadas puderam retomar as suas atividades presenciais. Essa perigosa medida, já que para poder abrir as escolas naquele contexto sanitário deveriam estar fechados todos os outros setores não essenciais – como praias, bares e restaurantes, entre outros – a fim de garantir menor circulação de pessoas pelos espaços públicos e transportes coletivos e liberá-los para a circulação de estudantes e suas famílias, colocou em risco a saúde e a segurança de professores, famílias e estudantes e colaborou ainda mais com o gap entre as escolas públicas e privadas.

 Paralelamente a esses movimentos, as escolas públicas viram os recursos minguados em forma alarmante, no momento em que mais teria sido necessário investir na contratação de profissionais que pudessem colaborar no desafio de implementar aulas remotas ou o famoso ensino híbrido – que combina aulas presenciais e remotas -, que exige uma logística escolar extremamente complexa, acompanhamento individualizado dos/das estudantes e recursos materiais diversos muitas das vezes previamente (e ainda hoje) inexistentes nas escolas, assim como ir preparando a infraestrutura escolar para um potencial retorno presencial. Com efeito,

Segundo o 6º Relatório Bimestral Execução Orçamentária do Ministério da Educação, que tem o objetivo de entender a destinação e o uso de recursos na educação básica, o MEC terminou 2020 com a menor dotação orçamentária (verba destinada a determinado fim) desde 2011, com R$ 143,3 bilhões. [...] E a educação básica encerrou o ano com o menor orçamento e a menor execução orçamentária (dinheiro de fato usado) da década. A etapa fechou 2020 com R$ 42,8 bilhões de dotação, 10,2% menos em comparação com 2019, e R$ 32,5 bilhões em despesas pagas. Em outras palavras, o MEC gastou mais recursos com a educação básica em 2010 e em todos os anos subsequentes do que em 2020. (LISBOA, CORREIO BRASILIENSE, 2021)

 

Apesar do envio de remessas pontuais para a compra de materiais específicos e de higiene para financiar um hipotético retorno às aulas presenciais ainda em 2020, movimento orientado apenas com uma cartilha com orientações gerais para isso[3], o balanço geral resultou no desfinanciamento da educação não apenas para a Educação Básica, pois as contas também não fecharam para as universidades que tiveram várias fontes de financiamento drasticamente reduzidas.

Assim, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações, atualmente, tem seu orçamento reduzido a um terço do que se investia dez anos atrás e pode ser considerado o menor orçamento da história da pasta, segundo informava o Jornal da USP em janeiro de 2021, com base numa comparação realizada pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC). Dentro deste ministério, encontra-se o Conselho Nacional Científico e Tecnológico, que financia a maior parte das bolsas de pesquisa no país, mas que teve seu orçamento ainda mais reduzido, gerando a iminência de cortes de bolsas de estudantes de pós-graduação que tinham projetos em execução e dependiam destas bolsas para continuá-los. Devemos considerar, aliás, que, em abril de 2020, como nos informava o jornal Folha de São Paulo, o atual governo tinha excluído das bolsas de iniciação científica a todos os cursos de Ciências Humanas. Frente ao cenário em que centenas de estudantes de diversos cursos, como os da área de Educação, não teriam mais acesso a essas bolsas, em diversos casos, os recursos foram supridos pelos recursos internos das próprias universidades. Em março deste ano, contudo, a Associação dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) realizou una entrevista coletiva, na que

Foi destacada pelos reitores e reitoras a redução dos recursos destinados à assistência estudantil, que chega a R$ 205.509.063,00. Num cenário de pandemia no qual as universidades foram protagonistas nas ações de enfrentamento do novo coronavírus, o impacto da redução orçamentária terá consequências diretas e imediatas. Como se trata de verba para despesas discricionárias, os primeiros setores implicados serão o funcionamento e a manutenção das atividades essenciais, como por exemplo, pagamento das contas de água e energia, serviços terceirizados (segurança, limpeza, etc.), compra de materiais, além dos programas de auxílio para estudantes e bolsas. Para o reitor Edwald, a diminuição do orçamento em contraste com o aumento dos custos em função da pandemia (adequações necessárias para o futuro retorno presencial, necessidades de aquisição de EPIs, contratação de plataformas de ensino) certamente vai levar o sistema ao colapso ao longo do ano (UFSB, 2021)

 

Neste trágico cenário para a Educação Superior e a ciência brasileira, dado que 95% das pesquisas nacionais são realizadas nas universidades públicas (UFRB, 2019), frente ao negacionismo científico abertamente propalado pelo atual governo e seus ataques explícitos aos/às docentes de todos os níveis educacionais, promovendo vigilância ideológica sobre o nosso trabalho inclusive em sala de aula, as ciências humanas e os estudos em Educação se veem ainda mais prejudicados, colocando situações extremas para a realização de pesquisas e projetos de extensão que poderiam, frente à catástrofe educacional que o país enfrenta, colaborar para resolvermos os graves problemas que enfrentamos junto com a Educação Básica.

 

Como vimos até aqui, a ausência de uma política educacional clara e o desfinanciamento da educação pública e da ciência brasileira durante a pandemia aprofundaram problemas históricos da educação no país, como as dificuldades de acesso e permanência para importantes segmentos da população, a segmentação do sistema nacional de educação, os desafios para conseguir uma distribuição equitativa do conhecimento, garantindo o direito à aprendizagem em todo o país e para todos os grupos sociais.

A fragmentação das respostas locais frente à situação pandêmica, consequência do deslocamento das ações e responsabilidades inclusive para os próprios gestores escolares e docentes em determinadas situações, que tiveram de apoiar-se nas famílias, as que nem sempre tinham condições concretas de fazê-lo, além de já evidenciar um cenário trágico para a educação nacional, anuncia uma catástrofe ainda maior: o comprometimento das trajetórias educacionais de milhares de crianças e jovens.

Com efeito, processos educacionais tendem a manifestar seus resultados principais a mediano e longo prazos porque a formação dos sujeitos não se realiza em ações imediatistas, todo o contrário! A educação precisa de ações contínuas e articuladas que vão sendo ressignificadas tanto individual quanto coletivamente ao longo do tempo. Nesse sentido, frente à exclusão e ao abandono educacional por parte do governo – e nisto incluo os diferentes sujeitos envolvidos: estudantes, famílias, docentes e gestores escolares – que, infelizmente, vivenciamos durante a pandemia e que, em muitos casos, ainda continua, cabe a advertência sobre a catástrofe educacional ainda por vir... Será que, como sociedade, estamos nos mobilizando para enfrentá-la? Será que estão sendo realizados os investimentos necessários, tanto de recursos quanto de pesquisas e formação docente, para prevenir, desde já, que o Sistema Nacional de Educação não colapse no curto e no mediano prazos? Até que ponto estamos, hoje, buscando alternativas pedagogicamente eficazes para evitar a destruição das trajetórias escolares de milhares de brasileiros e brasileiras e, com isso, das suas oportunidades e perspectivas de vida? Que estratégias coletivas podemos propor e realizar em função de desarticular o xeque mate que paira, hoje, sobre a Educação Brasileira?

 

Referências bibliográficas

BRASIL, Diário Oficial da União, LEI Nº 14.040, DE 18 DE AGOSTO DE 2020. Estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020; e altera a Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.040-de-18-de-agosto-de-2020-272981525 Acesso em 29/09/2021.

BRASIL, MEC, INEP, Censo da Educação Superior 2017. Divulgação dos principais resultados. Brasília, DF, Setembro de 2018.  Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=97041-apresentac-a-o-censo-superior-u-ltimo&Itemid=30192 Acesso em 29/09/2021.

CARDOSO NETO, Odorico Ferreira, DE NEZ, Esgelaine. Governos Lula, Dilma e Bolsonaro: as políticas públicas educacionais seus avanços, reveses e perspectivas, In: Interação, Curitiba, jul./set. 2021, v. 21, n. 3, p. 121-144. https://interacao.org/index.php/edicoes/article/view/117. Acesso em 29/09/2021.

FORSTER, Paula, CNN Brasil. Pandemia aumenta evasão escolar, diz relatório do Unicef. Publicada em 28/01/2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/pandemia-aumenta-evasao-escolar-diz-relatorio-do-unicef/ Acesso em 29/09/2021.

HONORATO, Gabriela; BORGES; Eduardo Henrique Narciso; KLITZKE, Melina. Expansão e diversificação da educação superior no brasil no período 2016-2020. In: ANDRETICH, Gabriela (org.), Ponencias del IX Encuentro Internacional de Investigadores en Políticas Educativas (EIIPE), Paraná, 22, 23, 24, 27 e 28 de setembro de 2021. Asociación de Universidades Grupo Montevideo, Núcleo Educación Para la Integración, Programa de Políticas Educativas, Universidad Nacional de Entre Ríos, Argentina.

LENCASTRE, Carla, #Colabora, ‘Pandemia’ de abandono e evasão escolar. Publicada em 1 de abril de 2021 Disponível em: https://projetocolabora.com.br/ods4/pandemia-de-abandono-e-evasao-escolar/#:~:text=Pesquisa%20da%20DataFolha%2C%20tamb%C3%A9m%20apresentada,%2C4%25%20de%20evas%C3%A3o%20escolar Acessado em 30/09/2021.

LISBOA, Ana Paula, Correio Brasiliense, 2020 foi o ano com menor gasto do MEC com educação básica desde 2010. Publicada em 21/02/2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/educacao-basica/2021/02/4907686-2020-foi-o-ano-com-menor-gasto-do-mec-com-educacao-basica-desde-2010.html  Acessado em 30/09/2021.

SALDANHA, Paulo. Governo Bolsonaro exclui humanas de edital de bolsas de iniciação científica. In: Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, Publicada em 30/04/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/04/governo-bolsonaro-exclui-humanas-de-edital-de-bolsas-de-iniciacao-cientifica.shtml. Acesso em 18/09/2021.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA, Universidades públicas respondem por mais de 95% da produção científica do Brasil. Publicada em 16/04/19. Disponível em: https://www.ufrb.edu.br/portal/noticias/5465-universidades-publicas-respondem-por-mais-de-95-da-producao-cientifica-do-brasil Acesso em 18/09/2021.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA, Corte no orçamento das universidades federais para 2021 pode chegar a R$ 1,1 bilhão, Publicada em 18/03/2021. Disponible en: https://ufsb.edu.br/ultimas-noticias/2860-corte-no-orcamento-das-universidades-federais-para-2021-pode-chegar-a-r-1-1-bilhao Acesso em 18/09/2021.



[1] Em 2002, Argentina, Chile e Uruguai superavam os 30% de taxa de escolarização universitária.

[2] Segundo dados do site QEdu, as matrículas das creches passaram de 3.755.092 em 2019 para 3.651.989 em 2020, enquanto que as matrículas da pré-escola passaram de 5.217.686 em 2019 para 5.127.806 em 2020. Fazendo as contas, isto significa uma perda de 192.983 estudantes. Confira os dados no link https://qedu.org.br/brasil/censo-escolar?year=2020&dependence=0&localization=0&education_stage=0&item=matriculas

[3] Veja o documento em: https://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2020/September/18/doc-orientador-para-retomada-segura-das-escolas-no-contexto-da-covid-19.pdf

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Silvina Julia Fernández
Pedagoga graduada na Universidad Nacional de Entre Ríos, Argentina, com mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professora Adjunta III da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membra da RedhBrasil.