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O Brasil (de novo) como problema – a questão do desenvolvimento, e algo mais - Leonardo Maia; Máximo Masson
O aspecto principal do pensamento brasileiro, no século passado, é o de
ter tomado o Brasil, em si, como problema. Essa cláusula é essencial. “Em si”
envolve, no caso, o reconhecimento de uma condição singular, de um conjunto de
características próprias, intrínsecas, irredutíveis a outras experiências,
nacionais ou civilizacionais. Dito de modo mais simples, a questão “o que é o
Brasil?” (e todo o seu campo semântico), encontrava agora a sua radical
novidade na recusa em se destinar a ela uma resposta apenas relativa ou rebaixada
– ou seja, a resposta à pergunta dirigida “o que é o Brasil face aos outros,
diante dos demais?” (países, nações, civilizações...). Assim formulada, tal
questão é infértil, inclemente, até porque já traria em seu bojo um desenho de
resposta. Ela já encaminhava a direção de uma conclusão, encaminhando o próprio
país em uma determinada direção pré-definida. Não havia, então, qualquer
problema: o simples fato de ter de perguntar por si talvez fosse suficiente
para fazer perceber que a “nossa” experiência (de fato inexistente, frustrada)
não chegara a (bom) termo. O Brasil seria um país como não o eram os principais
países da Europa, como não o era mesmo os Estados Unidos, igualmente novo. Um
não-país.
A grande mudança conhecida nessa segunda etapa envolve, justamente, o
deslocamento que possibilita que, do não-país que mal se pergunta, se chegue de
fato a uma questão verdadeira, uma questão em aberto: um Brasil-problema, uma
?-Brasil.
Temos dois tempos, então. De início, invariavelmente, tomara-se o país segundo
uma experiência derivada e indireta, definindo-o, de forma negativa, como o que
ele afinal não era - nem a Europa, nem os Estados Unidos -, mas tomando
esses como exemplos civilizatórios a serem seguidos. Ou seja, a resposta típica
anterior, quase sempre apresentava o país segundo um critério externo, colocado
diante de um padrão “melhor” a ser copiado, seguido. Enfim, como um país a
meio-caminho, em uma incerta resolução pelos moldes europeus ou americanos. Assim,
em busca dos países que teriam “dado certo”, o Brasil inversa, mas
necessariamente, só poderia ser pensado com sentido provisório, como um
não-ser, ou um ainda-não. Filho da Europa, e novo como os Estados Unidos, o
Brasil não fez valer adequadamente nem uma coisa nem outra, nem sua vinculação
de origem com o Velho Mundo, nem a sua vitalidade e pujança como novidade
planetária.
Nesse sentido, o pensamento contemporâneo brasileiro, e, de certa forma,
mesmo o pensamento brasileiro, tout court, tem talvez uma data precisa
de nascimento, ou ao menos um evento claro de origem. E, por contraste ao
primeiro, esse momento segundo talvez tenha de fato ensejado todo um verdadeiro
século brasileiro.
Essa situação de criação, - talvez fosse o caso de se dizer, situação necessariamente
estética (como é sempre o caso) -, parece coincidir com o advento da Semana
Moderna de 22. Algo de fato aconteceu ali, e o nosso problema então mudou. As
contribuições da Semana, sobretudo artísticas e culturais, na verdade
ultrapassam absolutamente esse registro mais restrito. Em última análise, o que
ali se define é o Brasil como problema. E a despeito das múltiplas direções assumidas
e das contribuições as mais variadas, possivelmente o que de mais importante se
apresenta é um novo tom, um novo estilo, novos objetivos e métodos, mas enfim,
uma nova forma e direção de pensar e uma nova imagem de país. Surge, com isso,
um novo tipo de intelectual. Na verdade, não apenas está exigido, por essa
mudança, um novo tipo de intelectual, brasileiro, nacional, mas também se
desenha um novo esforço. Não será nada fácil, desde então, ser intelectual,
cientista ou artista, ao lado de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila
do Amaral, Cassiano Ricardo, Raul Bopp... Mesmo os seus adversários eram já os
mais temíveis, como Lima Barreto ou Monteiro Lobato. O que apenas reforça a
tese: talvez, nesse período, nem tenha vindo deles – dos Modernistas – a maior
contribuição artística; essa esteve, sem dúvida, em produzir um novo ambiente,
um novo elemento desde onde se pensava diferentemente o país... O tipo de
intelectual à la Olavo Bilac, que sonhara ao menos poder morrer em Paris, se
mostrava subitamente ridículo.
Já os anos seguintes a esse movimento inicial parecem confirmar essa
impressão, e o que se desenhara inicialmente como nova orientação estética,
artística, se desdobra em expressão conceitual, analítica e interpretativa, nas
obras igualmente seminais de Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda (ambos
partícipes destacados na semana de 22), além de Caio Prado Jr, Anísio Teixeira
e, em especial, Gilberto Freyre. O pensamento brasileiro nunca mais foi o
mesmo.
Essa nova categoria de intelectuais, na condição de novos intérpretes do
Brasil, mas mais ainda, de novos “projetistas” do país impõe, para todo o resto
do século XX, ou ao menos para as décadas seguintes, até a interrupção forçada
pelo golpe de 1964, um novo compromisso de pensamento e um novo patamar de
ideias.
Em seguimento a esse processo disparador inicial, uma nova geração
destacada se apresenta logo após a retomada democrática, nos anos 50. Do início
dessa década até meados dos anos 60, são Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Paulo
Freire, Álvaro Vieira Pinto, Florestan Fernandes, dentre outros, que atualizam
o ‘problema brasileiro’ em relação à nova organização dicotômica característica
do período da Guerra Fria. E. de novo, a solução é singular, original. As
conceituações vão na direção de explicitar, denunciar e, quiçá, superar, a
armação quadrangular que envolve 4 “Ds”: dependência, descolonização, desenvolvimento
e democracia. Esse passava a ser o novo problema nacional. E, sem dúvida, boa
parte da intelectualidade brasileira, da esquerda à direita, se aplica nesses
anos em propor soluções significativas para essas questões maiores, desde a
mais cordata inserção periférica no âmbito do capitalismo mundial até uma
radical revolução (à) brasileira. É duvidoso se avançamos conceitualmente um só
passo em relação a esse período.
Tal debate é obviamente interrompido no período da Ditadura Militar. E um
dos mais perniciosos saldos da ditadura é decerto o rebaixamento da qualidade
crítica da discussão nacional. Não se trata apenas de lamentar a assimetria
ideológica que sobreveio, com o incremento das ideias à direita, e as
perseguições, inclusive as mais brutais, ao ideário de esquerda. Como vemos,
mesmo a direita sofre hoje de grande inaptidão intelectual. De forma geral, as
questões anteriores se perderam.
Essa declínio do debate nacional esvazia, por consequência, a sua própria
transmissão (pois afinal quem se associa a maus pensadores?), e impossibilita,
portanto, um efetivo legado conceitual e crítico. Em suma: o Brasil de algum
modo não é mais problema. Chegamos, a partir disso, a esse quadro surpreendente
de produzir intelectuais que já não tem os melhores instrumentos para pensar o seu
próprio país, de mal saber propor as questões nacionais da hora.
Uma marca particular dessa decadência foi o quase completo
desaparecimento da questão sobre o desenvolvimento nacional, que se mostrara
central ao longo de todo o século passado, principalmente em sua segunda
metade. Nos últimos quarenta anos, o tema do “desenvolvimento” no Brasil foi progressivamente
objeto de ou simples desconsideração ou adjetivações simplistas, rasas, mesmo
no âmbito da esquerda brasileira – compreendida aqui como o conjunto amplo de
sociais-democratas; socialistas, comunistas e mesmo anarquistas, independente
de integrarem ou não quadros partidários, e que terminaram por lançar à sombra os
importantes debates que atravessaram o século XX, desde ao menos a década de
1930.
Esses debates, como já indicamos, proporcionaram então pioneiras e expressivas
análises sobre o Brasil, quase sempre o considerando no contexto
latino-americano e em comparação com processos históricos das principais
sociedades capitalistas avançadas, o que permitiu a formulação dessa que é
possivelmente a mais importante matriz teórica produzida fora do eixo
norte-norte: a teoria da dependência. “Dependência”, com efeito, se mostrará um
meta-conceito ou um conceito-mor, a animar desde a teoria econômica de Celso
Furtado ao cinema de agitação de Glauber Rocha.
No entanto, o termo “desenvolvimento” veio a ser apropriado – e
midiaticamente quase monopolizado - nas décadas de 1960 e 1970, especialmente
nesta última, pelo pensamento conservador brasileiro, e a temática se viu
reduzida, afora algumas poucas exceções em trabalhos acadêmicos, a sinônimo de
“crescimento econômico”. Entendido este, na prática, ainda que edulcorado
ideologicamente sob formas diversas, como intensificação da acumulação de
capital pelas frações diversas da “burguesia interior” ou por grupos econômicos
internacionais. Grupos aos quais, direta ou indiretamente, buscaram se associar
as frações burguesas locais, dado que, entre essas, foram não só raras como
quase sempre fadadas ao insucesso as expressões de defesa de interesses
econômicos nacionais. Não por acaso, “desenvolvimento” veio a se tornar elemento
dos slogans ufanistas da ditadura militar que se traduziam em propaganda rasteiramente
chauvinista do tipo “Brasil, ame ou deixe-o”, ora retomada, conforme uma “modernização”
teológica, sob o formato “Brasil, acima de tudo, Deus acima de todos”.
Tal apropriação reducionista e conservadora contribuiu para que o tema do
desenvolvimento, especialmente a partir da crise da ditadura militar e do
fortalecimento das ações em prol da constituição de um regime político liberal
democrático no Brasil, terminasse por ser confundido ao período anterior de
arbítrio, e definitivamente descartado. Na verdade, a substituição foi nefasta:
ele se viu preterido por outra temática que, ao olhar imediato, se apresentava como
mais urgente: a desigualdade social. Digamos que, no campo da esquerda,
passou-se então de um tema ativo, profundamente combativo e afirmativo, mesmo
porque processual, dialético, para um outro, negativo, passivo, e quase imóvel.
Em lugar de desenvolver-se, planejar-se, projetar-se, superar a desigualdade.
O reconhecimento da necessidade emergente de superar o quadro de
desigualdade social então existente entre nós contrapôs, na visão de não
poucos, a necessidade de privilegiar a constituição de mecanismos de mobilidade
social frente à reforma das estruturas econômicas do país, algo apontado desde
ao menos os anos 1950. Em particular, o refluxo do crescimento econômico ocorrido
desde os anos 1980 acompanhado de todos os seus mais visíveis efeitos, entre os
quais o descontrole inflacionário e as tentativas infrutíferas de controle
mediante ações do Estado, abalaram as esperanças sobre o advento de um regime
democrático liberal em que fossem superadas mazelas sociais anteriores,
questionando-se a capacidade de intervenção de políticas públicas para a
conformação de uma sociedade de fato “moderna”.
As críticas às insuficiências de ações governamentais foram alimentadas
por um cenário internacional em que passaram a predominar os questionamentos às
experiências do “estado de bem-estar social”, apontando “malefícios” do
“gigantismo” do Estado, o qual impediria o livre desenvolvimento das empresas
capitalistas. Tais questionamentos, não raro concomitantes a avaliações morais
pejorativas sobre os trabalhadores (e sobre os pobres em geral), emergiram
originalmente na antiga Alemanha Ocidental, expandindo-se, em seguida, para
países periféricos (dentre eles, o Chile), e ganhando dimensão global com o
ascenso de Reagan e Thatcher. Conformou-se, então, nos campos político e econômico
(mas na intelectualidade, de modo geral) o domínio das diretrizes do denominado
“consenso de Washington”, com seu furor antiestatista, e a aversão a qualquer
planejamento público que não fosse a defesa irrestrita da desregulação dos
mercados e do livre fluxo do capital, bem como a repulsa a qualquer proposição
política comum, pública, inclusiva ou universal, logo qualificada de
“socialista” ou “comunista”.
Contudo, por inúmeras razões, o espectro do desenvolvimento volta agora a
assombrar o mundo, e o Brasil não é exceção. Na verdade, no nosso caso
específico, aparentemente voltamos a ser assombrados pelo pensamento
brasileiro, que pouco a pouco escapa ao seu ocultamento das últimas décadas. Debates
dos anos 50 a 70 são revisitados para iluminar alguns dos nossos impasses
presentes. Vários dos autores citados nesse texto, e outros tantos de igual
importância então voltando a circular entre nós, alguns com insuspeitada
intensidade. Em parte, aproveitando efemérides, há relançamentos e mesmo textos
inéditos sendo publicados, de Celso Furtado, Álvaro Vieira Pinto, Florestan
Fernandes e Paulo Freire. A coleção Pátria Grande, ligada ao IELA, da UFSC, tem
reeditado obras muito relevantes de Moniz Bandeira, Vânia Bambirra, Rui Mauro
Marini ou Guerreiro Ramos. A Fundação Darcy Ribeiro lançou recentemente um
programa de assinaturas de obras do intelectual mineiro e de diversos
pensadores latino-americanos. Dossiês e números especiais de periódicos
científicos têm igualmente suscitado a progressiva retomada de importantes debates,
enfocando seja autores, individualmente, seja instituições, como a CEPAL ou o
ISEB. Os exemplos enxameiam.
Dessa forma, estaria em curso, mais uma vez, um momento em que, ao menos
em parte do universo intelectual brasileiro, acadêmico ou público, se busca
escapar aos efeitos do que Pierre Bourdieu veio a denominar de “armadilhas da
razão imperialista”, isto é, o emprego acrítico de instrumental conceitual
formulado em contextos muito diversos do que aqueles em que passam a ser
empregados, e que, dada a força política e cultural dos locais em que foram
produzidos originalmente, impõem-se com grande sucesso à periferia. Armadilhas
que tendem a gerar não somente desconhecimento como desinteresse pela produção
nativa, incorrendo em um mimetismo característico, que replicam a antiga lógica
colonial, de consequências não raro funestas.
Pesquisadores de diferentes áreas voltam-se então para esse conjunto de
análises que, ao longo do século XX, procurou compreender a condição subalterna
de nossa sociedade em seus diferentes aspectos, apreendendo elementos que
poderiam contribuir para a sua superação. Entre esses elementos, notadamente, a
educação veio a ser objeto de reflexões decisivas, além de um ponto de
interseção “interdisciplinar” a garantir a ligação entre autores de campos
muito diversos, da Economia à Etnografia (quase invariavelmente, estabeleceram-se
relações entre as condições do campo educacional e a reprodução das formas
vigentes de dominação política).
Igualmente, estamos ambos, nos últimos anos, em particular do ano passado
para cá, buscando pensar o impacto desses temas nacionais sobre o campo
educacional brasileiro. É curioso notar como em quase todos esses pensadores e
pensadoras o debate sobre dependência e desenvolvimento envolveu, em alguma
medida, reflexões mais ou menos articuladas sore a situação da educação nacional
e as suas perspectivas.
Esse projeto já passou pela constituição de grupo e de projeto de
pesquisa, e por um primeiro projeto de extensão, a ser desenvolvido em 2022,
além da proposição, para breve, de um Laboratório, no âmbito da Faculdade de
Educação da UFRJ, com a temática “Pensamento Latino-Americano e Educação”.
Somamo-nos assim a esses valiosos esforços recentes em redimensionar o pensamento
brasileiro contemporâneo, em todo o seu diversificado alcance e intensidade.
Retomar a problemática do desenvolvimento, refletindo sobre o contexto do
século XXI e ao mesmo tempo considerando os enfoques desenvolvidos por todos esses
nomes, de óbvia importância, no campo da educação é, nesse momento,
estrategicamente crucial. Urge interromper a reprodução dos nossos diversos
impasses nacionais, para os quais a educação pode funcionar, como antes, ao
menos como um instrumento de esclarecimento crítico. Urge, ainda, confrontar a continuada
tagarelice das “palavras de ordem” neoliberais como desestatização,
empreendedorismo e similares, que somente têm contribuído para manter-nos afastados
do enfrentamento dos nossos reais interesses e necessidades, bem como para a
permanência do quadro socialmente absurdo em que vive a maioria dos brasileiros
e brasileiras. Projetos de desenvolvimento nacional, autônomos, fundados nos
interesses das maiorias subalternas, dependem antes de tudo da apropriação
renovada das interpretações realizadas sobre o Brasil e a sua condição
periférica.
--
Leonardo Maia
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Faculdade de Educação (área de Filosofia da Educação). É Doutor e Mestre em Filosofia pela PUC-Rio.
Máximo Masson
Professor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal do Rio de Janeiro.