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HUMANIDAD EN RED

Necropolítica e Crise pandêmica: riscos e possibilidades - Rubens R. R. Casara

Crise pandêmica e racionalidade neoliberal
A crise global, sanitária, ética e social provocada pelo Covid-19 em 2020 revelou as consequências das políticas econômicas neoliberais das décadas anteriores sobre os corpos vivos. A opção política e ideológica por processos de privatização e desmantelamento dos sistemas nacionais de cuidado e atenção à saúde produziu mortes e potencializou o sofrimento da população. A vinculação entre o neoliberalismo e a necropolítica tornou-se ainda mais evidente, uma vez que a satisfação dos detentores do poder econômico passa a exigir cálculos de interesse levam tanto à naturalização do ato de matar quanto à omissão de deixar morrer.


Para assegurar a acumulação do capital, a potencialização dos lucros ou a obtenção de vantagens pessoais, autoriza-se a morte e o sofrimento de parcela da população. No Brasil, em que a racionalidade neoliberal (esse modo de compreender e atuar no mundo que faz de tudo e de todos objeto negociáveis a partir de cálculos de interesse que visam exclusivamente o lucro ou a obtenção de vantagens pessoais recorrendo à imagem da empresa e/ou à norma da concorrência) encontra-se com a tradição autoritária (crença no uso da força, ódio ao saber, criação de inimigos imaginários, pensamento rígido, pseudo-consevadorismo, etc.) e com o populismo de direita (manipulação do medo e do ressentimento com o objetivo de criar divisões na sociedade e justificar a perseguição aos inimigos políticos), os efeitos da crise pandêmica foram sentidos de forma ainda mais intensa, com a explosão do número de mortes (diga-se: evitáveis), experiências macabras (como as ocorridas no Estado do Amazonas na tentativa de alcançar a “imunidade de rebanho”) e a opção política pelo extermínio de parcela da população de norte a sul do país.

Pandemia e necropolítica
Esse modo hegemônico de compreender e de atuar no mundo (a “racionalidade neoliberal”) passa necessariamente por decisões que relativizam direitos, inclusive o direito à vida digna. Mais do que uma teoria econômica ou um modo de governar o estado, o neoliberalismo se tornou um modo de governar as pessoas: dos grandes empresários ao trabalhador precarizado (que também se percebe como um empresário-de-si e trata os outros como concorrentes a serem vencidos ou inimigos a serem neutralizados), os indivíduos passam a decidir o que fazer através de cálculos que desconsideram valores, regras e princípios inegociáveis. Porém, grande parte da população permanece sem compreender a relação entre esse modo de pensar, o crescimento do número de mortos e as opções políticas condicionadas pelo neoliberalismo. Isso porque foi construída uma espécie de "véu" sobre os mecanismos de sociabilidade, de produção e de reprodução do capital (e da vida), bem como sobre as opções políticas neoliberais, que passaram a ser vistos como naturais e inevitáveis.

Da mesma maneira que as vítimas da violência policial nas periferias e nas favelas brasileiras, os pacientes sem vacinas ou tratamento adequado nos hospitais são também o resultado dessa racionalidade que tanto produz uma rede de poder capaz de extrapolar os limites legais como faz com que parcela da população passe a ser etiquetada de “indesejável” e, portanto, "matável". A decisão política de matar e também de deixar morrer parte da população constitue aquilo que Achille Mbembe, a partir da ideia de biopolítica desenvolvida por Michel Foucault, chamou de “necropolítica”.

Deixar morrer tornou-se um mandamento neoliberal sempre que o custo de uma vida reduzir os lucros e prejudicar o objetivo de acumulação tendencialmente ilimitada do capital. A racionalidade, hoje hegemônica, busca o lucro sobre os corpos, os mortos, as crises, os desastres, as pandemias etc.

A crise como momento de decisão A crise sanitária, ética, econômica e social global de 2020, porém, abre um horizonte de possibilidades. Há, a partir dela, um campo em disputa pelos atores sociais. Como em toda crise, gera-se um momento com potencial de ruptura. A palavra "crise", vale lembrar, era utilizada na Roma Antiga como um termo médico para designar o momento decisivo em que se define se um paciente doente irá morrer ou, a partir da própria doença, se curar.

Crise é sempre um momento provisório, decisivo, no qual o “novo” nasce ou o “velho” sai fortalecido. Em resumo: diante de cada crise, que sempre é a consequência de um determinado modo de ver e atuar no mundo, diversos caminhos e possibilidades se abrem.

A crise, portanto, pode levar ao esclarecimento e à superação da racionalidade neoliberal, abrindo espaço para o aparecimento de racionalidades contra-hegemônicas, que passam pelo resgate tanto da esfera do inegociável quanto do “comum”. Com isso, valores como a “vida”, a “liberdade” e a “verdade”, bem como os direitos e garantias fundamentais (dimensão normativa do “comum”) deixariam de ser relativizados ou negociados. O “comum”, que foi demonizado pela racionalidade neoliberal, pode voltar a servir de paradigma de atuação alternativa ao neoliberalismo, na medida em que: a) diz respeito a cada pessoa, que é, ao mesmo tempo, constituinte e responsável por sua manutenção; e b) que funciona como obstáculo contra a barbárie e freio à crise climática (outra consequência da ilimitação neoliberal na busca por acumulação) .

Também é razoável admitir que a crise pandêmica mostra-se apta a gerar reflexão sobre as lideranças autoritárias e populistas de direita, seja em razão da gestão desastrosa da pandemia que realizam, seja pela confronto com o real da morte, que faz nascer a necessidade de desvelar a estratégia discursiva de construção de uma fronteira política artificial entre o “nós” e o “eles”, que desconsidera as demandas reais insatisfeitas e nubla a percepção da configuração atual da luta de classes. Vale lembrar, por oportuno, que o neoliberalismo colocou o Estado a serviço dos super-ricos (1% da população) e gerou o fenômeno do devir-indesejável, transformando os 99% restantes em potenciais indesejáveis (e, portanto, descartáveis).

O “medo”, o “ressentimento” e a “ignorância”, os componentes do combustível que levam à manipulação de considerável parcela da população e abrem caminho para a vitória eleitoral da extrema-direita, não duram para sempre. É preciso aproveitar as contradições que se tornam explicitas nos momentos de crise para destruir o consenso em torno do projeto neoliberal.

O Mundo Pós-Pandêmico
O mundo pós-pandemia vai ser definido a partir da resolução de uma questão prévia: a manutenção ou não da racionalidade neoliberal. Insistir na naturalização do modo de pensar e atuar neoliberal, que considera a busca por lucro e/ou vantagens pessoais o único objetivo “racional” (ao mesmo tempo em que trata as pessoas como objetos negociáveis), pode levar a dois horizontes catastróficos (apresentados como naturais e inevitáveis, como toda manifestação neoliberal).

Nos países em que o pensamento autoritário se instaura sem maiores dificuldades, nos quais o conhecimento e a ciência são demonizados enquanto a violência é sacralizada, as mortes causadas pelo covid-19 são tratadas como positividades (da mesma maneira que a eugenia era tratada como uma positividade pelos nazistas no século passado). Nos cálculos de interesse levados a cabo pelos “técnicos” desses países, em que a morte e a violência estrutural produzida pelo funcionamento “normal” do capitalismo são naturalizadas e percebidas como inevitáveis, as mortes em razão da pandemia viral serão consideradas “ganhos” equivalentes aos que seriam obtidos com a destruição dos sistemas de proteção trabalhista e previdenciário. Assim, o Estado, utilizado como um instrumento a serviço dos detentores do poder econômico, funcionou e continuará a funcionar como uma agência indutora de mortes (que vão se somar ao projeto genocida dos indesejáveis em curso há muitos anos), dando concretude ao objetivo de controlar e neutralizar os indesejáveis aos olhos dos detentores do poder econômico.

Essa lógica, o aprofundamento do pensamento autoritário e o aumento de práticas flagrantemente antidemocráticas, não desaparecerá no mundo pós-pandemia. Ao contrário, o medo de novas pandemias (transformado em medo do outro) reatualizará o paradigma imunológico¹, justificando o uso do poder, sem limites rígidos, por uma agência estatal (em especial, da violência) para conter a população com a desculpa da luta contra o vírus.

Com isso, nos países de baixa densidade democrática, ter-se-á o aprofundamento de um paradigma repressivo de governo dos homens e das coisas baseado no poder disciplinar, no obscurantismo e na naturalização do absurdo consistente em mortes evitáveis, sempre em nome dos interesses de poucos.

Porém, uma das principais características da racionalidade neoliberal é a plasticidade, ou seja, sua capacidade de se adaptar aos mais variados contextos e ideologias. Assim, em países que conseguiram construir uma cultura democrática minimamente consistente, de respeito aos direitos e garantias fundamentais (vida, integridade, saúde, trabalho etc.), a lógica neoliberal se fará presente em mecanismos e dispositivos mais engenhosos e sofisticados.

A partir da necessidade da adoção de políticas de confinamento e distanciação social, mas principalmente em razão da manipulação política do medo da pandemia, novas estratégias (tipicamente biopolíticas) passarão a ser postas em prática e naturalizadas. Serão, ainda, potencializadas algumas técnicas de psicopoder que fazem o indivíduo tanto naturalizar a exploração (como por exemplo, o aumento das horas de trabalho em home office, novas precarizações do trabalho, redução dos salários etc.) quanto fornecer informações (que serão exploradas pelo mercado e utilizadas politicamente pelos governos).

Nesses países, em que o exercício explícito da violência ainda é capaz de chocar, ter-se-á um novo paradigma de governo das pessoas e das coisas. Nesse novo paradigma, a ideia de segurança sanitária passará a ocupar papel de destaque como justificativa para o afastamento de direitos fundamentais, como o da intimidade e o da inviolabilidade frente ao Estado.²

O medo da morte, diante do risco de novas pandemias, fará com que conquistas da civilização, que representavam limites democráticos à ação do Estado, sejam deixadas preventivamente de lado.

No mundo pós-pandêmico condicionado pela racionalidade neoliberal, o direito continuará a ser colonizado pela economia e a pandemia representará, apenas, mais um elemento que passará a ser levado em consideração nos cálculos de interesse dos detentores do poder político. Também os direitos e as garantias fundamentais continuarão a ser relativizados e desconsiderados, isso porque percebidos como potenciais obstáculos à eficiência repressiva do Estado, ao funcionamento do mercado e, principalmente, aos interesses dos detentores do poder econômico (que no Estado neoliberal, pós-democrático, não raro, exercem também o poder político).

O neoliberalismo, entendido como uma racionalidade, gerou mudanças na economia psíquica dos indivíduos e no funcionamento da sociedade e do Estado, que se transformou em um instrumento a serviço dos interesses dos detentores do poder econômico.

Há alternativa(s)?
Insistir com o modo de ver e atuar neoliberal fará com que o Estado continue a ser um instrumento a serviço do mercado e dos detentores do poder econômico, prestando auxílio financeiro a empresários e a instituições financeiras, restringindo a liberdade dos cidadãos em nome do medo da contaminação, eliminando os espaços de intimidade, reduzindo a liberdade das pessoas, reatualizando o poder disciplinar e aumentando o controle biopolítico sobre a população.

Mas, também existem saídas revolucionárias, a partir de um outro modo de ver e atuar no mundo. Apresentar caminhos alternativos para o mundo pós-pandemia é um desafio, mas também um dever ético. Construir coletivamente um outro mundo possível, restabelecer uma esfera inegociável do mundo-da-vida, em relação ao qual qual cada pessoa se perceba constituinte e responsável, ainda é um sonho, mas pode se tornar realidade.


1. Nesse particular: HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Rio de Janeiro: Vozes, 2017 .

2. Sobre o tema, vale ler: ZYLBERMAN, Patrick. Tempêtes microbiennes. Paris: Gallimard, 2013.

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Rubens R R Casara é Juiz de direito do TJ/RJ, Doutor em Direito, Mestre em Ciência Penais e com estágio pós-doutoral na Universidade Paris Nanterre (Paris X). Membro do Corpo Freudiano, da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do GENA (Paris X). Membro da RedhBrasil.