Os
versos da canção Elogio da Brigada Henry Reeve “a alma não tem
fronteira, nenhuma vida é estrangeira” emergiram do coração do poeta
Marcelo Biar, companheiro e parceiro nesta justa homenagem às brigadas
médicas cubanas por ocasião de sua indicação ao Nobel da Paz. Cantado
por notáveis intérpretes da música brasileira, do Chile e de Cuba, o
refrão do companheiro Biar fez a campanha vocalizar a expressão de
nossos mais caros valores humanitários em um momento em que somos
golpeados pela mais grave crise sanitária dos últimos cem anos e,
particularmente no Brasil, quando somos covardemente perseguidos pelo
milicianato instalado no governo federal e que implementa,
deliberadamente, uma política genocida contra a população.
Enquanto escrevo este texto, este enlutado país já ultrapassou a trágica marca de 450.000 mortos, vítimas da pandemia de COVID-19, estatística mórbida que segue irresistivelmente crescente. Entre os mortos, o companheiro Marcelo Biar em julho de 2020; o poeta que não pôde testemunhar e colher o espírito comunal e afetuoso que caracterizou a campanha desde o seu lançamento; mas seus versos vêm sendo cantados, declamados e reproduzidos por companheiros em outros países, literalmente ignorando fronteiras e reverberando nossa compartilhada visão de mundo.
Para o artista criador, nada poderia se opor tão frontalmente à própria morte do que a palavra e o canto que não cessa de ecoar, o canto que não se extingue. Unidos em reconhecimento pela histórica trajetória da Brigada Henry Reeve, muitos outros corpos se puseram em movimento e, agora, essas vozes multiplicadas conduzem os teus versos, companheiro, bem além do tempo que te foi concedido. Posto que através de uma canção que nos unimos para sempre: parceiros, seremos para sempre, nós e todos aqueles que se uniram neste canto que a todos eles pertence. Marcelo Biar, presente!
Em 2018, o filósofo camaronês Achille Mbembe cunhou o termo Necropolítica para conceituar uma forma de política que se consubstancia na morte, na morte como paradigma central. O governo de Jair Bolsonaro fez da pandemia o instrumento mais eficaz de sua política, iconizando o conceito de Mbembe, plena e tragicamente.
Então eu afirmo: os versos de Biar se opõem absolutamente, também, à necropolítica de Bolsonaro; seus versos nos reconectam ao mundo solidário que é tão bem representado pelas brigadas médicas cubanas. O efeito é vivificante e enunciador da necessária agitação cívica, confrontadora dessa paralisante experiência à qual estamos submetidos; em outras palavras, nossa reação ao terror e ao silenciamento passa pela vocalização de que somos seres solidários “em qualquer lugar, em qualquer país, quando for preciso”, a exemplo da admirável Brigada Henry Reeve.
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Radicado no Paraná desde 2016, Felipe Radicetti (https://www.feliperadicetti.com) é organista e compositor atuante no cinema, no teatro e para o cancioneiro popular. Mestre em Música e Educação pela UNI-Rio, (2010), é autor de dois livros publicados pela Editora Intersaberes: “Escutas e olhares cruzados nos contextos audiovisuais” (2018) e “Trilhas Sonoras: o que escutamos no teatro, cinema e nas mídias audiovisuais” (2020). Membro da RedhBrasil.